sexta-feira, 20 de junho de 2014

Parte III - Quando está lá em baixo acabou

   Tinha eu dez anos quando, no dia 23 de Dezembro me foi dito que a minha irmã mais velha tinha morrido. Nesse mesmo dia, fui levada ao funeral, com a incumbência de apoiar o meu pai. É estranho como me lembro tão bem daquele dia. Como se, durante o decorrer dos eventos, estivesse a viver uma experiência extra corporal.
    O telefone tocou a meio da noite. A minha mãe atendeu e começou a chorar, e a minha reacção foi chorar com ela. Achei logo que ou o meu avô, que tinha sofrido um AVC há uns meses e sabíamos que poderia morrer a qualquer momento, ou um amigo da minha mãe tinha morrido. Este último tinha um cancro terminal e o filho, prestes a ficar órfão de pai e de mãe, estava a passar a noite em nossa casa para se afastar da doença e da morte. "Mãe, foi o Mário?", "Não. É a Joana. Está muito doente. Está no hospital." chorou a minha mãe.

    De manhã vestiu-me com um macaco de calções em fazenda azul escura e camisa e collants de lã brancos. Peguei na prenda de Natal que tinha para a minha irmã, uma cigarrilha  de osso trabalhada, para lha dar e animar um pouco.
    A minha mãe, uma amiga e eu parámos, num café de um pequeno centro comercial do bairro, para comer qualquer coisa antes de seguirmos para o hospital. Pedi dinheiro à minha mãe para comprar uma segunda lembrança à minha irmã. No corredor, a nossa amiga pára-me e diz "A Joana não está no hospital. A Joana morreu". Corri para os braços da minha mãe e chorámos juntas.

    Entrámos na capela mortuária. Eu queria ver a minha irmã. O corpo dela jazia no meio da sala e quem estava à volta chorava. Tinha um véu branco a cobrir-lhe a face. Eu queria ver a minha irmã, mas a minha mãe não deixou. “Prefiro que te recordes dela viva, do que te lembres dela assim”. Será que quando a mãe, minha avó, morreu ela a viu? Ou será que lhe disseram o mesmo?
    Não me lembro da minha irmã. Nem viva, nem morta. Só de fotografias que vi e revi após esse dia. E da sua gargalhada estridente, vibrante. E mesmo esse som se vai desvanecendo com o passar do tempo... Talvez seja melhor assim a sua face pálida ter-me-ia aterrorizado para sempre.

    Quando saímos da capela fui no carro funerário, entre o meu pai e a mãe da minha irmã. Tudo para apoiar o meu pai. Eu estava desconfortável, confusa. O que era suposto fazer? O que devia ou podia dizer? Ofereci um rebuçado que encontrei no bolso do casaco. Recusaram e eu comi-o. Senti-me tola. A dor deles era imensa. E a minha? O que sentia eu? Certamente não me poderia sentir pior do que eles, que eram os pais. E, se o meu pai não chorava, eu não podia chorar. Porque eu estava ali para o acompanhar e não podia ser mais uma preocupação, um fardo.
    Lembro-me de descermos a rua do cemitério até ao local onde tinha sido escavada a sepultura. Lembro-me de pousarem o caixão e de o abrirem. Lembro-me de ficar horrorizada pela mãe e uma amiga beijarem o corpo. Não me lembro de mais.

    A minha mãe diz que me fui abaixo quando o caixão desceu à terra. Acredito. Não tenho memória desse momento, mas não deve ser fácil ver alguém que se ama a ser enterrado. Não deve ser fácil perceber pela primeira vez que nunca mais poderemos ver, nunca mais poderemos tocar, nunca mais poderemos falar com essa pessoa. Quando se desce à terra é o fim do fim. Não há espaço para ignorar que não há “só mais um toque”, “só mais um beijo”, “só mais um adeus”.
   

    Quando está lá em baixo acabou.

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