Tinha eu dez anos quando, no dia 23 de Dezembro me foi dito que a minha
irmã mais velha tinha morrido. Nesse mesmo dia, fui levada ao funeral, com a
incumbência de apoiar o meu pai. É estranho como me lembro tão bem daquele dia.
Como se, durante o decorrer dos eventos, estivesse a viver uma experiência
extra corporal.
O telefone tocou a
meio da noite. A minha mãe atendeu e começou a chorar, e a minha reacção foi
chorar com ela. Achei logo que ou o meu avô, que tinha sofrido um AVC há uns
meses e sabíamos que poderia morrer a qualquer momento, ou um amigo da minha
mãe tinha morrido. Este último tinha um cancro terminal e o filho, prestes a
ficar órfão de pai e de mãe, estava a passar a noite em nossa casa para se
afastar da doença e da morte. "Mãe, foi o Mário?", "Não. É a
Joana. Está muito doente. Está no hospital." chorou a minha mãe.
De manhã vestiu-me com
um macaco de calções em fazenda azul escura e camisa e collants de lã brancos. Peguei
na prenda de Natal que tinha para a minha irmã, uma cigarrilha de osso trabalhada, para lha dar e animar um pouco.
A minha mãe, uma amiga e eu parámos, num
café de um pequeno centro comercial do bairro, para comer qualquer coisa antes
de seguirmos para o hospital. Pedi dinheiro à minha mãe para comprar uma
segunda lembrança à minha irmã. No corredor, a nossa amiga pára-me e diz
"A Joana não está no hospital. A Joana morreu". Corri para os braços
da minha mãe e chorámos juntas.
Entrámos na capela mortuária. Eu queria ver
a minha irmã. O corpo dela jazia no meio da sala e quem estava à volta chorava.
Tinha um véu branco a cobrir-lhe a face. Eu queria ver a minha irmã, mas a minha mãe não
deixou. “Prefiro que te recordes dela viva, do que te lembres dela assim”. Será
que quando a mãe, minha avó, morreu ela a viu? Ou será que lhe disseram o
mesmo?
Não me lembro da minha
irmã. Nem viva, nem morta. Só de fotografias que vi e revi após esse dia. E da
sua gargalhada estridente, vibrante. E mesmo esse som se vai desvanecendo com o
passar do tempo... Talvez seja melhor assim a sua face pálida ter-me-ia
aterrorizado para sempre.
Quando saímos da
capela fui no carro funerário, entre o meu pai e a mãe da minha irmã. Tudo para
apoiar o meu pai. Eu estava desconfortável, confusa. O que era suposto fazer? O
que devia ou podia dizer? Ofereci um rebuçado que encontrei no bolso do casaco.
Recusaram e eu comi-o. Senti-me tola. A dor deles era imensa. E a minha? O que
sentia eu? Certamente não me poderia sentir pior do que eles, que eram os pais.
E, se o meu pai não chorava, eu não podia chorar. Porque eu estava ali para o
acompanhar e não podia ser mais uma preocupação, um fardo.
Lembro-me de descermos
a rua do cemitério até ao local onde tinha sido escavada a sepultura. Lembro-me
de pousarem o caixão e de o abrirem. Lembro-me de ficar horrorizada pela mãe e
uma amiga beijarem o corpo. Não me lembro de mais.
A minha mãe diz que me
fui abaixo quando o caixão desceu à terra. Acredito. Não tenho memória desse
momento, mas não deve ser fácil ver alguém que se ama a ser enterrado. Não deve
ser fácil perceber pela primeira vez que nunca mais poderemos ver, nunca mais
poderemos tocar, nunca mais poderemos falar com essa pessoa. Quando se desce à
terra é o fim do fim. Não há espaço para ignorar que não há “só mais um toque”,
“só mais um beijo”, “só mais um adeus”.
Quando está lá em
baixo acabou.
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