sábado, 19 de março de 2016

Memórias de Meu Pai - Revisto

Tal bom cliché psicanalítico, sempre fui "Menina do Papá". Tanto que o único alvo do meu carinho enquanto criança era o Meu Pai. Bem, o meu cão também, mas o que interessa neste momento é o Meu Pai.



Os meus pais separaram-se quando eu tinha 3 anos e, como me parece a coisa mais justa e acertada, a minha mãe ficou comigo e o Meu Pai ficou com o cão.
Quem me educava e aturava as minhas birras (que dizem serem das piores a que já se assistiu - prenúncio do feitio maravilhoso que se aprimorou com os anos) era a minha mãe e quem me levava a passear, brincar, jantar fora, etc., era o Meu Pai.
Quando a minha mãe se zangava comigo ou me obrigava a fazer coisas que eu não queria, como acordar cedo para ir para a escola (sempre tive um péssimo acordar, por favor não falem comigo antes do pequeno-almoço, e sempre fui avessa a obrigações - eu faço o que quero, quando quero e ninguém manda em mim!), lá me punha eu a fazer chantagem emocional enquanto gritava em plenos pulmões "Eu quero o Papá! Eu quero o Meu Papá!!!!!!".

Um pequeno parêntesis (quem me conhece sabe que adoro fazer parêntesis nas conversas, porque me lembro de coisas que estão relacionadas e que explicam melhor o contexto do que estou a falar): Nunca tratei os meus pais por "mamã" ou "papá". Durante um período até os tratava por "mãe" e "pai", quando as circunstâncias exigiam que cumprissem o seu papel parental como mudar fralda, dar comida, dores de barriga, ou os tratava pelo nome quando era para brincar. Mas "mamã" e "papá", não.

Adorava quando o Meu Pai me ia buscar à escola e me levava a passear (e ao cão) ao jardim de Belém e a comer gelados na Vela Latina, levando-me depois a ver uma loja que tinha caixas de música e, ocasionalmente, oferecendo-me uma, deixando-me completamente encantada.
(No meu casamento ofereceu-me mais uma caixa de música e só não me levou às lágrimas porque fiz um enorme esforço para me conter e não borrar a maquilhagem).


O Meu Pai levava-me às cavalitas, aos baloiços, deixava-me comer entradas e sobremesa nos restaurantes. O Meu Pai levava-me a esplanadas para beber groselha enquanto ele se resfrescava com uma imperial. O Meu Pai ensinou-me a conduzir. O Meu Pai ensinou-me a boiar, "É muito importante, porque se algum dia estiveres aflita no mar e ficares cansada, assim podes recuperar energias", disse-me enquanto nadávamos nas águas geladas e perigosas de Santa Cruz, onde é raro o mar permitir que nele nos banhemos. O Meu Pai levava-me a bares à noite quando se juntava com os amigos e dava-me moedas para as arcadas. O Meu Pai avisou-me veemente para não encostar o dedo ao incandescente cinzeiro do carro, coisa que fiz mal ele saiu. E claro que me queimei, e, obviamente, sofri em silêncio porque o meu pai nunca se tinha zangado comigo e não ia ser por causa daquilo.

Quando eu tinha 8 anos, o Meu Pai levou-me à Eurodisney! À Eurodisney!! Eu tive um boné que era a cara da Margarida, bonecos da Minnie e do Mickey! Com 8 anos? Uma maravilha!

O Meu Pai não estava todos os dias, mas quando aparecia era uma festa! Eu corria que nem uma seta para o colo dele e não o largava mais. O que invariavelmente deixava a minha avó cheia de ciúmes, "só quer o pai, só quer o pai! É uma loucura pelo pai! Não o larga!". Ficava enciumada porque andava sempre atrás de mim para me beijar e eu fugia, porque nunca fui dessas lamechices de abraços e beijinhos, só com o Meu Pai (e o cão).

Houve uma altura, na minha adolescência (claro!), em que me "incompatibilizei" com a minha mãe e fui morar uns tempos com o Meu Pai. Um espectáculo! Tinha um andar inteiro só para mim, com casa de banho, sala e televisão no quarto! Isso é que era privacidade. Ficava a ver filmes e séries até às tantas, uma maravilha. Claro que acabei por fazer as pazes com a minha mãe e voltei para casa dela.
Certo dia o Meu Pai ligou-me e, quando não atendi, deixou-me uma mensagem que me levou às lágrimas "Olá Filhota... Bem... Era só para ouvir a tua voz."



Ora, porque é que esta mensagem foi tão importante para mim? Bem, a seguinte história demonstra-o.
Tinha eu 13 anos (reparem, é "treze" que se diz e não "treuze") quando fui com uma amiga de férias para Amesterdão, ficar em casa de uma amiga dos meus pais. Ora, nós tínhamos o nosso dinheiro e fomos deixadas por nossa conta durante o dia para fazer o que quisessemos durante esse tempo. O que é que uma miúda gulosa e entregue a si própria faz? Come porcaria. Durante três semanas o meu dia, falando apenas em alimentação, era à base de puré de maçã, pudins de chocolate e caramelo e sandes de manteiga de amendoim. Três semanas. Todos os dias. 21 dias de luxúria alimentar.
No dia em que regressámos a Lisboa, as nossas famílias foram buscar-nos ao aeroporto. E lá estava o Meu Pai! o Meu Papá! Que surpresa! Que contente que eu fiquei! E como de costume, corri para os seus braços. O Meu Pai abraçou-me, ao largar-me olhei-o com um sorriso e com aquele todo o meu carinho que sempre foi apenas só para ele, e ele com um enorme sorriso nos lábios e, em alto e bom som para toda a gente ouvir, disse algo que nunca me esquecerei:

    "ESTÁS GORDA QUE NEM UM TEXUGO!!!!"

Aquela mensagem de voz foi importante para mim porque é ao meu pai que saio uma besta emocional, incapaz de falar sobre sentimentos e cenas. "Sentimentos e cenas", que bonito.
Nunca precisei que o meu pai dissesse o que sentia por mim, essas coisas sentem-se quando uma pessoa está. E a pessoa não precisa de estar sempre presente para ser presente, precisa apenas de estar disponível. Só isso.
Não precisamos de passar o tempo a verbalizar o quanto gostamos uns dos outros, nem sequer precisamos de estar com eles todos os dias. Apenas precisamos de estar quando estamos. E essas coisas sentem-se e passam para os outros. É daqui que vem a segurança emocional, afectiva, é do sentir e não do dizer.
Nunca tive dúvidas de que o meu pai me amava, ele nunca precisou de o dizer. Nem ele, nem a minha mãe. São pessoas que, independentemente de tudo, souberam (cada um à sua maneira) transmitir-me o seu afecto.
Mas a verdade é que, de vez em quando, mesmo que seja uma única vez na vida: sabe tão bem ouvir o quanto gostam de nós. O meu pai não o verbalizou, mas bolas. Quando uma besta emocional nos deixa uma mensagem a dizer que era só para ouvir a nossa voz, o que é isso se não dizer que nos ama e que tem saudades nossas?





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