Faz, esta semana, 21 anos que o meu Avô João morreu. Ainda me lembro, foi no dia 25 de Abril.
Parece-me uma boa altura para re-publicar o texto que escrevi sobre ele.
No Natal passado acabámos a partilhar memórias e ficou claríssimo que para mim, para a minha irmã (11 anos mais velha do que eu) e para o nosso pai o Avô João não foi a mesma pessoa. Como poderia ser? Apanhámo-lo em papéis diferentes e em alturas bastante diferentes da sua vida.
O Avô João era o pai do Meu Pai. O Avô João era muito paciente.
Ainda me lembro dos preparativos para irmos para Santa Cruz, antes de haver auto-estradas. Um carocha, cheio de malas até ao tecto (porque já não cabia mais nada no porta-bagagens, que era à frente), à frente o avô a conduzir, ao lado a avó (que uma vez instalada não se mexia até chegarmos ao destino), atrás: eu, malas, um cão e um papagaio. Durante a viagem, parávamos umas três vezes para eu vomitar e umas outras três para o Avô João fazer xixi (sabem como é, a idade…).
A paciência do Avô João não acabava, nunca. Excepto quando era a hora de refeição. Era a única altura em que ficava colérico comigo. Muito irritado, muito vermelho. Porque eu não comida, porque eu brincava com a comida, porque quando já estavam a terminar a refeição eu ainda estava a mexer a colher na sopa. Depois era mandada para a cozinha, de onde apenas sairia quando tivesse comido tudo. Geralmente, alguém acabava por me perdoar quando reparavam que mesmo a “solitária” não me fazia comer e que lá continuava eu entretida com os meus pensamento, a girar a colher… 2 horas depois!
Imagem retirada daqui |
O Avô João era um espectáculo. Não havia nada que ele não fizesse pelas netas.
O Avô João levava as netas (e o cão) para fazerem anúncios de televisão. Apareci num para a Compal, em que andava numa mota invisível e me abastecia de sumo. E outro para um banco que não me lembro o nome (mas a cor era azul e tinha um leão), em que fomos os dois e tínhamos de carregar um colchão até ao banco. Já o cão, entrou num anúncio da Robbialac.
Era o Avô João que me punha a fazer xixi, antes de irmos todos dormir. Era o Avô João que se levantava a meio da noite para ir à casa de banho e depois me levava a mim para eu não fazer xixi na cama. Foi o Avô João que acabou com essa coisa das fraldas.
Foi o Avô João que me tirou a chucha. E com que arte o fez, apelando ao amor e à ganância de uma criança que adorava chucha. Um dia tivemos uma conversa no quintal, provavelmente a primeira conversa de que a minha memória se lembra, deveria ter uns 3 ou 4 anos. “Se plantares a chucha, vai crescer uma árvore de chuchas”, “de todas as cores?” perguntei curiosa, “sim…”, “de todos os tamanhos? E feitios?”, já estava a ficar entusiasmada, “sim. De todas as cores, tamanhos e feitios”. “Mas há uma condição.”, avisou o Avô João, “durante o tempo que a árvore leva a crescer e a dar chuchas, não podes usar outra chucha. Mas depois, vais ter todas as chuchas, de todas as cores e de todos os tamanhos e feitios”. E, sem duvidar da sua palavra de Avô, entreguei-lhe a minha chucha, e fiquei a observá-lo enquanto a plantava e regava no fim. E fiquei à espera, até hoje.
Imagem retirada daqui |
O Avô João também arranjava tudo. Um buraco no chapéu de palha? Mete-se uma papoila de tecido e está feito. Ainda mais giro do que dantes. Bicicletas? Não havia problema.
Lembro-me de coisas como lançar papagaios ou ir a correr com o Avô João para a rua, para que ele fotografasse uma trovoada seca, enquanto a Avó gritava da janela que éramos malucos e que aquilo era um perigo. Ainda hoje adoro trovoadas, sinto-me confortável e segura. Talvez me reporte aquele momento em que estávamos no portão da casa a olhar para o céu.
Foi o Avô João que me ensinou a andar de bicicleta e que me tirou as rodinhas. Nunca me esquecerei desse dia. A segurar a bicicleta empurrar-me pela rua, cada vez mais rápido, e depois em vez de a agarrar com as mãos, usar o cabo de uma vassoura para me dar uma sensação de segurança e apoio. Cabo esse que já não lá estava, quando olhei para trás e vi o Avô João lá ao fundo, a sorrir.
Ora, houve um dia que a bicicleta se estragou e, como de costume, foi o Avô João que pegou nas suas ferramentas e a arranjou, deixando-me toda contente. Peguei logo na bicicleta e lá fui “dar uma volta ao quarteirão” (e sim, ia sozinha, porque naquele tempo, mesmo com 7 anitos tinha essa liberdade, que era comum. Brincávamos na rua e quando era hora de almoço, lá vinham os pais ou avós gritar os nossos nomes à porta das casas). Estava eu na minha voltinha quando, como habitual “saquei um cavalinho” e aconteceu aquilo que torna esta história memorável. Ao puxar pelo guiador, para que a parte da frente da bicicleta ficasse elevada no ar, eis que a peça se solta do resto da bicicleta. Fico com o guiador nas mãos e, não sei que leis da física funcionaram para tornar esta história mais hilariante, voei por cima da bicicleta e aterrei de queixo e mãos na gravilha (claro!). Ora, eu nunca fui “mariquinhas”, portanto quando caí, fiquei um bocado abananada, mas lá me levantei e comecei a sacudir as pedrinhas do vestido e das mãos esfoladas. Nestes preparos, sinto o queixo húmido e levo lá as mãos. Quando olho, imenso sangue… Ora, eu nunca fui “mariquinhas”, menos com o meu sangue. Começo num pranto e lá vem um vizinho para me ajudar a ir para casa.
Claro, que o Avô João voltou a arranjar a bicicleta e eu voltei a confiar nele. Ainda hoje tenho a cicatriz no queixo. A minha bicicleta azul, com as borrachas do guiador brancas (e cujo nome agora não me lembro), não sei o que lhe aconteceu.
Claro, que o Avô João voltou a arranjar a bicicleta e eu voltei a confiar nele. Ainda hoje tenho a cicatriz no queixo. A minha bicicleta azul, com as borrachas do guiador brancas (e cujo nome agora não me lembro), não sei o que lhe aconteceu.
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