segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A D. Manuela

   A minha Avó, a D. Manuela, é a matriarca da Família Soares. Ai, a D. Manuela...
   Imagino que as vossas famílias sejam parecidas com a minha.
   E que as reuniões das famílias portuguesas sejam parecidas com as descrições que vemos das das famílias italianas:
   Uma mesa cheia de comida, com uma multidão à volta, putos a correr, gente a gritar, gente a rir à gargalhada e gente a chorar.
   Bem, se a vossa família não se comporta assim não sabem o que estão a perder.

   A D. Manuela sempre nos adorou e sempre nos quis por perto.
   Era a D. Manuela que tratava de mim quando ficava doente. Amigdalites, varicela e todas essas coisas, lá era eu levada para casa dos avós.
   Foi a D. Manuela que entrou em pânico quando me viu com a cara toda ensanguentada. Estava a brincar às escondidas e fui esconder-me no único sítio que os meus avós já tinham dito mil vezes para eu não me aproximar. Aqueles cactos gigantes, com umas folhas compridas e muito duras. Fui esconder-me debaixo do cacto e espetei uma dessas folhas na testa e nunca uma ferida sangrou tanto. Não parava. Quando cheguei ao pé da minha avó a chorar, era sangue por todos os lados e metade da cara inchada. Mas nunca disse o verdadeiro motivo. Inventei uma treta qualquer sobre estar a correr à volta casa e ter ido contra a parede. Mas nunca assumi que tinha ido brincar para onde tinha sido proibida.

   A D. Manuela sempre nos adorou e sempre nos quis por perto. Com demasiada intensidade. Com uma perversidade trágico-cómica que lhe é característica. Com muito amor e muita inconveniência e disparate.
   Houve um ano, quando eu tinha para aí 6 anos, em que saí de casa muito cedo para ir brincar com um amigo. Ora, com a pressa para ir para a brincadeira não vesti as cuecas (odeio esta palavra... visceralmente). Quando a D. Manuela viu que eu tinha ido para a rua nesses preparos indecentes, disse-me "eu nunca te bati, mas hoje tem de ser". E pimba! palmada no rabo. No ano seguinte, não me lembro que disparate fiz, mas disse-me a D. Manuela "eu nunca te bati, mas...", "Mas a avó disse-me isso no ano passado! E deu-me uma palmada!", "Eu???" disse ela indignada, "Estás-me a desmentir?". E pimba! Mais uma palmada.
   Lembro-me de ver a minha avó a costurar. Principalmente meias, com um ovo de madeira. Sempre achei piada ao ovo de madeira. Um dia entrei na sala, descalça como sempre (adoro andar descalça), e espetei uma agulha no pé. Não piquei o pé, a agulha entrou mesmo na carne e ficou lá espetada com alguma profundidade. Quando estou prestes a chorar (tinha uns 7 ou 8 anos), diz a D. Manuela "É bem feito! Eu não te disse para não andares descalça?".
   Não há como ganhar... A culpa é sempre nossa. Hoje em dia uma avó ou uma mãe culparia a escola dos miúdos por não lhes ensinarem que as agulhas picam, porque a culpa é sempre dos professores.

   Bem, voltemos ao tema inicial de reuniões familiares.
   Era o aniversário da D. Manuela. Para aí o 86º. Estava tudo a correr bem: ríamos, comíamos, bebíamos... Gozávamos com os putos e tentávamos enganá-los, discutia-se o estado do País, que vai de mal a pior (sempre!), evitando-se falar de esquerda ou direita para que a gritaria não seja maior. Recordavam-se histórias de família. Pediam-se mais duas garrafas de vinho (sempre branco fresquinho para a D. Manuela). Falávamos como a D. Manuela estava bem, considerando a idade e que seria, provavelmente, a ruindade que a conserva e como nos enterrará a todos. É bem rija, a D. Manuela. E se me acham má ou cruel, haveriam de conhecer a D. Manuela. Ai, a D. Manuela...
   Estávamos todos animados, ainda ninguém se tinha chateado e abandonado tempestuosamente o restaurante. Nisto o Miguel, filho da minha prima Patrícia e que estava sentado ao lado da bisavó, começa a chorar.
   - O que foi, Miguel? Que se passou?
   E o Miguel chorava, chorava...
   - Então, Miguel? Estás a chorar porquê?
   - Mãe!! - Vociferou o meu Pai - O que é que andou a dizer ao miúdo?
   - Eu???? - Disse a D. Manuela - Eu não disse nada... Estávamos só a conversar e ele começou a chorar.
   E o Miguel chorava, chorava.
   E a mesa alternava entre dar um raspanete à D. Manuela e entre rir, a adivinhar com o que viria dali.    Que disparate teria saído daquela mente.
   - A avó vai morrer! - Disse o Miguel num pranto e continuou a chorar, a chorar.
   - Morrer? Oh, Mãe! - Reforçou o meu tio - O que é que disse ao Miguel?
   - Eu não disse nada! - Manteve a D. Manuela, com um ar muito enfiado.
   E a mesa começou a rir.
   - Claro que vai morrer, Miguel. Mas não é agora. Todos nós vamos morrer um dia. Não te preocupes. - Disse eu. Agora que penso nisso, talvez não tenha ajudado.
   E o Miguel, continuava a chorar. Mas revelou:
   - A avó disse que está muito velhinha e vai morrer.
   E a mesa exclamou um "aaahhhh" geral. Não há ninguém que não o tenha ouvido já. Eu já o oiço à 30 anos. A minha irmã há 40. A minha avó está muito velhinha e vai morrer há quatro décadas!
   A diferença é que nunca ninguém ali valorizou o que dizia a D. Manuela. Sou capaz de jurar que um dos meus sobrinhos, provavelmente a Salomé, lhe terá respondido um "Está bem", quando confrontada com o mesmo discurso.
   Lá se deu um raspanete, se disse uns "Parece impossível. É sempre a mesma coisa.", riu-se e se concluiu que já poderíamos passar as sobremesas.

   A D. Manuela fez este Setembro 90 anos! Entretanto já foi parar ao hospital duas ou três vezes. Ficamos sempre aliviados quando ela acorda e começa a refilar.

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