quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Senso, Sensibilidade, Intriga e Maldade

    Há quem não tenha bom senso, acabe a ferir susceptibilidades para alimentar a intriga e, simplesmente, ser maldoso.
    Eu chamo-lhe "não saber fazer as coisas" e é coisa que me tira do sério.

    As relações humanas não são simples e é preciso balançar muitos factores para que não se firam susceptibilidades.
    Lá por sermos amigos e gostarmos de alguém não significa que gostemos de tudo o que caracteriza a pessoa e que, de vez em quando (com menor ou maior frequência) não nos faça querer arrancar cabelos. Muitas vezes, até o que gostamos numas situações nos irrita profundamente noutras.
    É normal. Faz parte!

    Como tal, também faz parte que acabemos por comentar ou desabafar com uma terceira (ou quarta ou quinta) pessoa acerca do que nos incomoda. E como não temos à nossa frente o objecto do nosso incómodo, não precisamos de medir palavras ou conceitos, tendo cuidado com a sensibilidade do mesmo.
    É normal. E quanto maior a frequência com que estamos com a pessoa maior a irritação, porque mais frequentemente somos confrontados com a aquilo que ela faz, a forma como faz, com o português que usa, com o cheiro que tem, o que seja!
    Não conheço quem não desabafe sobre outras pessoas sendo mais ou menos incisivo na forma de o fazer.

    Depois vem a intriga, geralmente aliada a uma descontextualização do que foi dito, de como foi dito e por quem foi dito.
    Duas pessoas falam sobre uma terceira, que consideram sua amiga, acerca de uma característica que as incomoda, de algo que aconteceu e que irritou.
    - Epá, tenho de falar com a Gertrudes. Já me estou a passar com que anda a acontecer e não tenho pachorra para aturar merdas de ninguém.
    - Por acaso já tinha reparado que isso aconteceu. É uma estupidez. Mas sim, acho que devem falar para resolver a sítuação.
    - Ai, sim. Claro que vou falar. Tenho é de esperar pela oportunidade e de me acalmar senão ainda acabo a mandar à outra parte.
    (Claro que poli um bocado este diálogo. Mas acho que é compreensível)
    Ora, uma quarta pessoa ouve o que foi falado e, mal vê a Gertrudes diz-lhe:
    - Olha, ouvi fulana a dizer que se estava a passar contigo e que não tinha pachorra para aturar as tuas merdas. E sicrana disse que já tinha reparado e que era uma estupidez.
    Minhas senhoras e meus senhores, isto é descontextualizar um assunto, é intriga e é extremamente desnecessário. Pode fazer com que um desentendimento que se calhar era uma ninharia adquira grandes proporções e para quê?
    Depois, fulana e sicrana têm de resolver atabalhoadamente a questão de forma a preservar uma amizade. E de explicar à Gertrudes que isso foi tirado de contexto, que iam falar com ela, mas usando outras palavras, que aguardavam pelo momento certo. Têm de fazer ver à Gertrudes que ela própria fala assim dos outros e que é normal.
    Se a quarta pessoa não fosse intriguista das duas uma:
    a) Ficava caladinha e não se metia no assunto
    b) Se não consegue manter a boca fechada, falava com a Gertrudes e dizia-lhe "Olha, ouvi fulana e sicrana a falar. Não percebi muito bem sobre o quê, mas elas estão um bocado chateadas com algo se passou. mas bolas, vocês são amigas, deviam era falar e esclarecer as coisas".

    Depois, ainda temos o cenário da maldade. Em que ninguém tem rigorosamente nada a ganhar e que o que faz/diz é pura maldade.
    Todos temos um amigo com uma característica que não consegue controlar (seja o cheiro, seja o suar, seja o défice intelectual, seja ser estrábico) e que outros já comentaram entre si quando não está presente.
    É uma característica é algo que acontece e é algo que não se resolve com uma conversa. É algo que o grupo tem de aprender a aceitar.
    Bem, alguém ir ter com essa pessoa e dizer-lhe "todos comentam que o teu suar em bica lhes mete nojo", é ser maldoso. E faz com que a pessoa que abre a boca seja mais nojenta do que qualquer fluido corporal.

    Sim, eu comento as tuas atitudes nas tuas costas. Se calhar faço-o primeiro do que te confrontar directamente.
    Sim, eu sou bruta e uso palavrões para descrever o que acho de ti e da situação quando estou a desabafar.
    Não, eu não vou contar o que tu me pediste para não contar.
    Não, eu não te vou dizer que cheiras mal da boca.
    Sim, eu estou longe de ser perfeita e digo e faço coisas que irritam/incomodam os outros.
    Sim, eu sei que tu fazes o mesmo comigo.

    Mas, mais cedo ou mais tarde, se formos mesmo amigos, falarei contigo sobre o que acho que temos de resolver para manter a nossa amizade. E estou sempre disponível para que o faças comigo.
    Tens é de compreender que no momento eu não posso falar contigo se for algo que me tira do sério. Sabes que sou impulsiva, bruta que nem casa. Sabes tu e sei eu.
    Portanto, quando algo me irrita, preciso de me afastar um pouco, desabafar com outra pessoa (sem ter medo de ferir a tua susceptibilidade), perceber se o que me irrita tem a ver com algo que merece ou não ser resolvido (às vezes passamo-nos com coisas que mais tarde acabamos por perceber que foi parvoíce nossa), e se merecer vou falar contigo expondo a questão de forma clara e tranquila, com palavras bem escolhidas.
    Ah, e não te esqueças: se a pessoa foi ter contigo para fazer intrigas em relação a outros, provavelmente fará o mesmo em relação a ti.

    Era mesmo preciso explicar isto?

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Das relações.

   Não tive poucos, nem tive muitos. Tive os que quis, quando quis, como quis e durante o tempo que quis. E isso é que importa. Considerando que foram 15 anos de relações, poderiam ter sido muitos mais, considerando a minha forma de estar na vida, foram os que foram.

   8. Sendo que 4 tinham o mesmo nome (5 em 9, se contar com a minha primeira paixão, que durou 3 anos).
   Aliás, um amigo meu costumava gozar e dizer que se mudasse de nome tinha hipótese de que eu quisesse alguma coisa com ele. Hoje em dia, quando conheço alguém com esse nome, fico logo de pé atrás. Mas acho que a "maldição" já passou.
   O que é incrível, é que aconteceu sentir atracção antes até de saber o nome. Durante uns tempos achei que tinha de me render à ideia de que o universo queria que eu ficasse o resto da minha vida com alguém que se chamava... hmmm... Filipe. Logicamente que "Filipe", não é o verdadeiro nome. Mas dá alguma dignidade à coisa, se ao falar dele parecer que estou a falar de Reis: Filipe I, Filipe II, Filipe III, Filipe IV.
   Falarei de cada um dos 8 (ou 9, ou 7... ainda não sei. Falarei dos que me apetecer, quando me apetecer). Uns com mais destaque do que outros. E com os nomes alterados, obviamente. Porque nenhum homem quer que se saiba que chorou baba e ranho quando a relação acabou, que foi um traidor, que foi corno, que foi uma má foda, que tinha "mummy issues".

   Como qualquer mulher, já me chamaram "puta" por ter ido para a cama com alguém e já me chamaram o mesmo por ter mandado alguém passear. Nem sei por qual dos motivos fui mais "puta".   Agora que penso nisso, seria curioso ter contado. Porque tenho a sensação de que fui mais insultada por gajos rejeitados, do que por mulheres enciúmadas.

   Nunca me envolvi com ninguém por causa do físico. Pensando em todos eles, nenhum era bonito ou tinha um bom corpo espectacular. Era mais pela conversa e pelo intelecto. Assim de repente, pensando nas suas áreas de estudo/trabalho, vejamos: Informática, Física e Matemática, Cardiopneumologia, Psicologia, Comunicação. Gosto de geeks e intelectuais.
   O único que, quando começamos, tinha um corpo fantástico é o D. Mas a vida de casado, encarregou-se de tratar disso. Lá se foi o six pack. Mas continua a ser o mais bonito da "colecção". Bonito e inteligente! Lucky me.

   Nunca tive uma "one night stand", no sentido de conhecer alguém, ir para a cama com ele na hora e nunca mais o ver. Não porque não tivesse havido desejo/atracção, mas porque sou um bocado germofóbica. Trocar fluidos com alguém que acabei de conhecer? Errr.... Não, obrigada. Para mim é nojento. E reparem, só falo por mim. Não julgo quem o faça. A não ser que a pessoa tenha algo contagioso bem visível. A sério? Tinhas mesmo de te enrolar com aquela gaja ou aquele gajo com herpes bem visível? Que nojo!
   Mas tive uma "afternoon stand", no sentido em que antes de nos termos encontrado "dessa" forma, já tinha havido uns beijinhos (beijinhos e não "beijinho"! ok?), e ainda hoje falo tranquilamente com a pessoa. Apesar de ter havido muito filme entretanto. Foi com o Filipe III, que terá direito a uma história só dele. Entre os meus amigos essa história já é conhecida e é a história sexual que mais gosto de contar. As pessoas riem-se até mais não.

   Já fui traída e já traí. Falo primeiro de ter levado um par de cornos (e se calhar foram mais, não faço ideia, nem me preocupo muito com isso), porque assim não me começam logo a chamar-me nomes. Esta deu para rir. Como se não o fizessem já.
   De qualquer forma, tenho uma dupla perspectiva da coisa. Ter traído, nas condições em que o fiz, deixavam-me altamente angustiada. E não era pelo meu namorado da altura. Era porque eu estava a trair com alguém que também o estava a fazer, por quem estava apaixonada e que me disse que se eu deixasse o meu namorado que me deixava. Mais uma história que contarei noutro dia. Falarei do "Diogo" e do "Guilherme", noutra altura.
   Quando fui traída pelo Filipe II, concluí que o que doía a nível da traição sexual era apenas o Ego e que com isso facilmente lidava. O que doeu, foi ele ter-me feito perder dois anos da minha vida, ter-me colocado em risco e ter-se aproveitado das minhas dores mais profundas para o fazer e sair impune. Tentar, porque no fim, no auge do filme todo até meteu a PJ ao barulho. Mais uma história que, a seu tempo, partilharei com vocês e o que quero dizer com "perder dois anos da minha vida". E esta será muito importante partilhar, até porque o tipo virou "stalker" e acho que é bom falar abertamente sobre isso e sobre como lidei com toda a situação (e, 5 anos mais tarde, ainda lido).

   O que importa é que em todas os casos aprendi algo. Sobre mim, sobre a minha forma de viver a afectividade e as relações.
   Mas há algo que sempre fiz, sempre dei o mais que pude de mim. Nunca vi as pessoas como um "divertimento" passageiro ou de forma exclusivamente egoísta.
   Só não falo com duas pessoas. Uma delas é o stalker, o motivo é óbvio. Outra é o Diogo, e não é porque ele não tivesse tentado. É porque é uma pessoa que não tem mesmo nada a ver comigo, de quem eu vejo fotografias e penso no ser patético que se tornou. E porque é o único que eu tenho vergonha de dizer que namorei. Mas desejo que seja feliz. Aliás, desejo que ambos sejam muito felizes e que não me chateiem.

   Pensando bem, é algo que desejo a toda a gente neste mundo. Que sejam felizes e não me chateiem. Principalmente que não me chateiem.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A D. Manuela

   A minha Avó, a D. Manuela, é a matriarca da Família Soares. Ai, a D. Manuela...
   Imagino que as vossas famílias sejam parecidas com a minha.
   E que as reuniões das famílias portuguesas sejam parecidas com as descrições que vemos das das famílias italianas:
   Uma mesa cheia de comida, com uma multidão à volta, putos a correr, gente a gritar, gente a rir à gargalhada e gente a chorar.
   Bem, se a vossa família não se comporta assim não sabem o que estão a perder.

   A D. Manuela sempre nos adorou e sempre nos quis por perto.
   Era a D. Manuela que tratava de mim quando ficava doente. Amigdalites, varicela e todas essas coisas, lá era eu levada para casa dos avós.
   Foi a D. Manuela que entrou em pânico quando me viu com a cara toda ensanguentada. Estava a brincar às escondidas e fui esconder-me no único sítio que os meus avós já tinham dito mil vezes para eu não me aproximar. Aqueles cactos gigantes, com umas folhas compridas e muito duras. Fui esconder-me debaixo do cacto e espetei uma dessas folhas na testa e nunca uma ferida sangrou tanto. Não parava. Quando cheguei ao pé da minha avó a chorar, era sangue por todos os lados e metade da cara inchada. Mas nunca disse o verdadeiro motivo. Inventei uma treta qualquer sobre estar a correr à volta casa e ter ido contra a parede. Mas nunca assumi que tinha ido brincar para onde tinha sido proibida.

   A D. Manuela sempre nos adorou e sempre nos quis por perto. Com demasiada intensidade. Com uma perversidade trágico-cómica que lhe é característica. Com muito amor e muita inconveniência e disparate.
   Houve um ano, quando eu tinha para aí 6 anos, em que saí de casa muito cedo para ir brincar com um amigo. Ora, com a pressa para ir para a brincadeira não vesti as cuecas (odeio esta palavra... visceralmente). Quando a D. Manuela viu que eu tinha ido para a rua nesses preparos indecentes, disse-me "eu nunca te bati, mas hoje tem de ser". E pimba! palmada no rabo. No ano seguinte, não me lembro que disparate fiz, mas disse-me a D. Manuela "eu nunca te bati, mas...", "Mas a avó disse-me isso no ano passado! E deu-me uma palmada!", "Eu???" disse ela indignada, "Estás-me a desmentir?". E pimba! Mais uma palmada.
   Lembro-me de ver a minha avó a costurar. Principalmente meias, com um ovo de madeira. Sempre achei piada ao ovo de madeira. Um dia entrei na sala, descalça como sempre (adoro andar descalça), e espetei uma agulha no pé. Não piquei o pé, a agulha entrou mesmo na carne e ficou lá espetada com alguma profundidade. Quando estou prestes a chorar (tinha uns 7 ou 8 anos), diz a D. Manuela "É bem feito! Eu não te disse para não andares descalça?".
   Não há como ganhar... A culpa é sempre nossa. Hoje em dia uma avó ou uma mãe culparia a escola dos miúdos por não lhes ensinarem que as agulhas picam, porque a culpa é sempre dos professores.

   Bem, voltemos ao tema inicial de reuniões familiares.
   Era o aniversário da D. Manuela. Para aí o 86º. Estava tudo a correr bem: ríamos, comíamos, bebíamos... Gozávamos com os putos e tentávamos enganá-los, discutia-se o estado do País, que vai de mal a pior (sempre!), evitando-se falar de esquerda ou direita para que a gritaria não seja maior. Recordavam-se histórias de família. Pediam-se mais duas garrafas de vinho (sempre branco fresquinho para a D. Manuela). Falávamos como a D. Manuela estava bem, considerando a idade e que seria, provavelmente, a ruindade que a conserva e como nos enterrará a todos. É bem rija, a D. Manuela. E se me acham má ou cruel, haveriam de conhecer a D. Manuela. Ai, a D. Manuela...
   Estávamos todos animados, ainda ninguém se tinha chateado e abandonado tempestuosamente o restaurante. Nisto o Miguel, filho da minha prima Patrícia e que estava sentado ao lado da bisavó, começa a chorar.
   - O que foi, Miguel? Que se passou?
   E o Miguel chorava, chorava...
   - Então, Miguel? Estás a chorar porquê?
   - Mãe!! - Vociferou o meu Pai - O que é que andou a dizer ao miúdo?
   - Eu???? - Disse a D. Manuela - Eu não disse nada... Estávamos só a conversar e ele começou a chorar.
   E o Miguel chorava, chorava.
   E a mesa alternava entre dar um raspanete à D. Manuela e entre rir, a adivinhar com o que viria dali.    Que disparate teria saído daquela mente.
   - A avó vai morrer! - Disse o Miguel num pranto e continuou a chorar, a chorar.
   - Morrer? Oh, Mãe! - Reforçou o meu tio - O que é que disse ao Miguel?
   - Eu não disse nada! - Manteve a D. Manuela, com um ar muito enfiado.
   E a mesa começou a rir.
   - Claro que vai morrer, Miguel. Mas não é agora. Todos nós vamos morrer um dia. Não te preocupes. - Disse eu. Agora que penso nisso, talvez não tenha ajudado.
   E o Miguel, continuava a chorar. Mas revelou:
   - A avó disse que está muito velhinha e vai morrer.
   E a mesa exclamou um "aaahhhh" geral. Não há ninguém que não o tenha ouvido já. Eu já o oiço à 30 anos. A minha irmã há 40. A minha avó está muito velhinha e vai morrer há quatro décadas!
   A diferença é que nunca ninguém ali valorizou o que dizia a D. Manuela. Sou capaz de jurar que um dos meus sobrinhos, provavelmente a Salomé, lhe terá respondido um "Está bem", quando confrontada com o mesmo discurso.
   Lá se deu um raspanete, se disse uns "Parece impossível. É sempre a mesma coisa.", riu-se e se concluiu que já poderíamos passar as sobremesas.

   A D. Manuela fez este Setembro 90 anos! Entretanto já foi parar ao hospital duas ou três vezes. Ficamos sempre aliviados quando ela acorda e começa a refilar.

domingo, 19 de outubro de 2014

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O Avô João

     O Avô João era o pai do Meu Pai. O Avô João era muito paciente.

   Ainda me lembro dos preparativos para irmos para Santa Cruz, antes de haver auto-estradas. Um carocha, cheio de malas até ao tecto (porque já não cabia mais nada no porta-bagagens, que era à frente), à frente o avô a conduzir, ao lado a avó (que uma vez instalada não se mexia até chegarmos ao destino), atrás: eu, malas, um cão e um papagaio. Durante a viagem, parávamos umas três vezes para eu vomitar e umas outras três para o Avô João fazer xixi (sabem como é, a idade…).
A paciência do Avô João não acabava, nunca. Excepto quando era a hora de refeição. Era a única altura em que ficava colérico comigo. Muito irritado, muito vermelho. Porque eu não comida, porque eu brincava com a comida, porque quando já estavam a terminar a refeição eu ainda estava a mexer a colher na sopa. Depois era mandada para a cozinha, de onde apenas sairia quando tivesse comido tudo. Geralmente, alguém acabava por me perdoar quando reparavam que mesmo a “solitária” não me fazia comer e que lá continuava eu entretida com os meus pensamento, a girar a colher… 2 horas depois!

   O Avô João era um espectáculo. Não havia nada que ele não fizesse pelas netas.
   O Avô João levava as netas (e o cão) para fazerem anúncios de televisão. Apareci num para a Compal, em que andava numa mota invisível e me abastecia de sumo. E outro para um banco que não me lembro o nome (mas a cor era azul e tinha um leão), em que fomos os dois e tínhamos de carregar um colchão até ao banco. Já o cão, entrou num anúncio da Robbialac.
   Era o Avô João que me punha a fazer xixi, antes de irmos todos dormir. Era o Avô João que se levantava a meio da noite para ir à casa de banho e depois me levava a mim para eu não fazer xixi na cama. Foi o Avô João que acabou com essa coisa das fraldas.
   Foi o Avô João que me tirou a chucha. E com que arte o fez, apelando ao amor e à ganância de uma criança que adorava chucha. Um dia tivemos uma conversa no quintal, provavelmente a primeira conversa de que a minha memória se lembra, deveria ter uns 3 ou 4 anos. “Se plantares a chucha, vai crescer uma árvore de chuchas”, “de todas as cores?” perguntei curiosa, “sim…”, “de todos os tamanhos? E feitios?”, já estava a ficar entusiasmada, “sim. De todas as cores, tamanhos e feitios”. “Mas há uma condição.”, avisou o Avô João, “durante o tempo que a árvore leva a crescer e a dar chuchas, não podes usar outra chucha. Mas depois, vais ter todas as chuchas, de todas as cores e de todos os tamanhos e feitios”. E, sem duvidar da sua palavra de Avô, entreguei-lhe a minha chucha, e fiquei a observá-lo enquanto a plantava e regava no fim. E fiquei à espera, até hoje.

   O Avô João também arranjava tudo. Um buraco no chapéu de palha? Mete-se uma papoila de tecido e está feito. Ainda mais giro do que dantes. Bicicletas? Não havia problema. O que me leva a outra história em que confiei, mais uma vez, no Avô João.
   Lembro-me de coisas como lançar papagaios ou ir a correr com o Avô João para a rua, para que ele fotografasse uma trovoada seca, enquanto a Avó gritava da janela que éramos malucos e que aquilo era um perigo. Ainda hoje adoro trovoadas, sinto-me confortável e segura. Talvez me reporte aquele momento em que estávamos no portão da casa a olhar para o céu.
Foi o Avô João que me ensinou a andar de bicicleta e que me tirou as rodinhas. Nunca me esquecerei desse dia. A segurar a bicicleta empurrar-me pela rua, cada vez mais rápido, e depois em vez de a agarrar com as mãos, usar o cabo de uma vassoura para me dar uma sensação de segurança e apoio. Cabo esse que já não lá estava, quando olhei para trás e vi o Avô João lá ao fundo, a sorrir.


   Ora, houve um dia que a bicicleta se estragou e, como de costume, foi o Avô João que pegou nas suas ferramentas e a arranjou, deixando-me toda contente. Peguei logo na bicicleta e lá fui “dar uma volta ao quarteirão” (e sim, ia sozinha, porque naquele tempo, mesmo com 7 anitos tinha essa liberdade, que era comum. Brincávamos na rua e quando era hora de almoço, lá vinham os pais ou avós gritar os nossos nomes à porta das casas). Estava eu na minha voltinha quando, como habitual “saquei um cavalinho” e aconteceu aquilo que torna esta história memorável. Ao puxar pelo guiador, para que a parte da frente da bicicleta ficasse elevada no ar, eis que a peça se solta do resto da bicicleta. Fico com o guiador nas mãos e, não sei que leis da física funcionaram para tornar esta história mais hilariante, voei por cima da bicicleta e aterrei de queixo e mãos na gravilha (claro!). Ora, eu nunca fui “mariquinhas”, portanto quando caí, fiquei um bocado abananada, mas lá me levantei e comecei a sacudir as pedrinhas do vestido e das mãos esfoladas. Nestes preparos, sinto o queixo húmido e levo lá as mãos. Quando olho, imenso sangue… Ora, eu nunca fui “mariquinhas”, menos com o meu sangue. Começo num pranto e lá vem um vizinho para me ajudar a ir para casa. Claro, que o Avô João voltou a arranjar a bicicleta e eu voltei a confiar nele. Ainda hoje tenho a cicatriz no queixo. A minha bicicleta azul, com as borrachas do guiador brancas (e cujo nome agora não me lembro), não sei o que lhe aconteceu.

domingo, 28 de setembro de 2014

O que eu procuro não és tu, sou eu.

    Porque me dizes essas coisas? Há mesmo necessidade disso entre nós? Precisas mesmo disso? Acreditas mesmo que é por ti que eu volto? Para te ver? Para te ouvir? Para te sentir?
    Eu não venho por ti. Eu venho por mim. Para me sentir viva, para ME sentir. Para que haja algo de diferente e emocionante no tédio que parte da minha vida se tornou.

    Não me interpretes mal, eu gosto de ti e estou encantada por ti. Pelo que és, por tudo o que fazes e procuras fazer. Pela imensa energia que tens, por não parares. Pelas parvoíces que dizes e que me fazem rir. Admiro-te, mas não é por ti que eu estou apaixonada. Estou apaixonada pelo espaço que criámos. Pela adrenalina que sinto por estar a fazer algo que é secreto. Por sentir que ainda sou capaz de sentir. Que o meu coração ainda bate, que a minha respiração ainda fica ofegante. Sentir que há algo que me entusiasma, que me excita, que me faz o sangue correr, furiosamente, pelas veias.

    Eu gosto de ti. Mais do que te tocar ou ver, eu gosto de te ouvir. Gosto de interagir contigo. Sei que está para breve o dia em que o nosso "espaço" acabará. E não nos voltaremos a encontrar, pelo menos intencionalmente. Desaparecerás ou desaparecerei eu. E será natural. Sei que não é "só por ti", eu sei que já conheceste pessoas tão ou mais interessantes do que eu. Não preciso de evidências, eu sei. E isso não me incomoda minimamente, tal como não me incomoda. Estou bem com isso. O que me incomoda é quando me dizes lugares-comuns, com um objectivo que eu não sei bem qual é. Eu não preciso que me digas isso, não quero que me digas isso.

    Eu gosto de ti, estou apaixonada pelo nós. Mas é por mim que eu faço isto. Por mim, não por ti. O que eu procuro não és tu, sou eu.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Memórias de Meu Pai

    Tal bom cliché psicanalítico, sempre fui "Menina do Papá". Tanto que o único alvo do meu carinho enquanto criança era o Meu Pai. Bem, o meu cão também, mas o que interessa neste momento é o Meu Pai.

    Os meus pais separaram-se quando eu tinha 3 anos e, como me parece a coisa mais justa e acertada, a minha mãe ficou comigo e o Meu Pai ficou com o cão.
    Quem me educava e aturava as minhas birras, que dizem serem das piores a que já se assistiu (prenúncio do feitio maravilhoso que se aprimorou com os anos), era a minha mãe e quem me levava a passear, brincar, jantar fora, etc., era o Meu Pai.

    Quando a minha mãe se zangava comigo ou me obrigava a fazer coisas que eu não queria, como acordar cedo para ir para a escola (sempre tive um péssimo acordar, por favor não falem comigo antes do pequeno-almoço, e sempre fui avessa a obrigações, eu faço o que quero, quando quero e ninguém manda em mim!), lá me punha eu a fazer chantagem emocional enquanto gritava em plenos pulmões "Eu quero o Papá! Eu quero o Meu Papá!!!!!!".

    Um pequeno parêntesis (quem me conhece sabe que adoro fazer parêntesis nas conversas, porque me lembro que coisas que estão relacionadas e que explicam melhor o contexto do que estou a dizer, percebem?): Nunca tratei os meus pais por "mamã" ou "papá". Até, durante um período os tratava por "mãe" e "pai", quando as circunstâncias exigiam que cumprissem o seu papel parental como mudar fralda, dar comida, dores de barriga. Quando era para brincar tratava-os pelo nome. Mas "mamã" e "papá", não.

    Adorava quando o Meu Pai me ia buscar à escola e me levava a passear (e ao cão) ao jardim de Belém e a comer gelados na Vela Latina, levando-me a ver uma loja que tinha caixas de música e ocasionalmente oferecendo-me uma, deixando-me completamente encantada.

    O Meu Pai levava-me às cavalitas, aos baloiços, deixava-me comer entradas e sobremesa nos restaurantes. O Meu Pai levava-me a esplanadas para beber groselha enquanto ele se resfrescava com uma imperial. O Meu Pai ensinou-me a conduzir. O Meu Pai ensinou-me a boiar, "É muito importante, porque se algum dia estiveres aflita no mar e ficares cansada, assim podes recuperar energias", disse-me enquanto nadávamos nas águas geladas e perigosas de Santa Cruz, onde é raro o mar permitir que nele nos banhemos. O Meu Pai levava-me a bares à noite quando se juntava com os amigos e dava-me moedas para as arcadas. O Meu Pai avisou-me veemente para não encostar o dedo ao incandescente cinzeiro do carro, coisa que fiz mal ele saiu. E claro que me queimei, e, obviamente, sofri em silêncio porque o meu pai nunca se tinha zangado comigo e não ia ser por causa daquilo.

    Quando eu tinha 8 anos, o Meu Pai levou-me à Eurodisney! À Eurodisney!! Eu tive um boné que era a cara da Margarida, bonecos da Minnie e do Mickey! Com 8 anos? Uma maravilha!

    O Meu Pai não estava todos os dias, mas quando aparecia era uma festa! Eu corria que nem uma seta para o colo dele e não o largava mais. O que invariavelmente deixava a minha avó cheia de ciúmes, "só quer o pai, só quer o pai! É uma loucura pelo pai! Não o larga!". Ficava enciumada porque andava sempre atrás de mim para me beijar e eu fugia, porque nunca fui dessas lamechices de abraços e beijinhos, só com o Meu Pai (e o cão).

    Houve uma altura, na minha adolescência (claro!), em que me "incompatibilizei" com a minha mãe e fui morar uns tempos com o Meu Pai. Um espectáculo! Tinha um andar inteiro só para mim, com casa de banho, sala e televisão no quarto! Isso é que era privacidade. Ficava a ver filmes e séries até às tantas, uma maravilha. Claro que acabei por fazer as pazes com a minha mãe e voltei para casa dela.
    Certo dia o Meu Pai ligou-me e quando não atendi deixou-me uma mensagem que me levou às lágrimas "Olá Filhota... Bem... Era só para ouvir a tua voz."


    Ora, porque é que esta mensagem foi tão importante para mim? Bem, a seguinte história demonstra-o.
    Tinha eu 13 (treze!!! não "treuze!!! treze!!!) anos quando fui com uma amiga de férias para Amesterdão, ficar em casa de uma amiga dos meus pais. Ora, nós tínhamos o nosso dinheiro e fomos deixadas por nossa conta durante o dia para fazer o que quisessemos durante esse tempo. O que é que uma miúda gulosa e entregue a si própria faz? Come merda.
    Durante três semanas o meu dia, falando apenas em alimentação, era à base de puré de maçã, pudins de chocolate e caramelo e sandes de manteiga de amendoim. Três semanas. Todos os dias... 21 dias.
    No dia em que regressámos a Lisboa, as nossas famílias foram buscar-nos ao aeroporto. E lá estava o Meu Pai! o Meu Papá! Que surpresa! Que contente que eu fiquei! E como de costume, corri para os seus braços. O Meu Pai abraçou-me, ao largar-me olhei-o com um sorriso e com aquele todo o meu carinho que sempre foi apenas só para ele, e ele com um enorme sorriso nos lábios e, em alto e bom som para toda a gente ouvir, disse algo que nunca me esquecerei:

    "ESTÁS GORDA QUE NEM UM TEXUGO!!!!"

domingo, 21 de setembro de 2014

"Nada. Agora já não me lembro."

    - Como é que consegues estar aí, simplesmente deitada, sem fazer nada? Sem ir, sem fazer, sem ser produtiva?
    - Nada? Estou a pensar. A sonhar. A contemplar. A fugir do mundo que me é imposto, com regras que não concordo e que não se adequam ao meu Ser. A imaginar e a construir o meu mundo. Como chamas a isso "nada" é algo que me transcende e que acho completamente absurdo.

    A maioria das pessoas fica inquieta quando vê alguém a pensar. Não sei porquê, nem elas sabem (ou querem) muito bem explicar o porquê, mas isso pouco me importa.
Geralmente sou eu a pensativa, cujo decurso dos pensamentos é interrompido por uma das seguintes questões:
    - Estás bem?
    - Passa-se alguma coisa?
    - Estás preocupada com algo?
   Geralmente seguidas de "É que estás muito calada...". E quando respondo "Estou só a pensar", segue-se um "Nada, agora já não me lembro..." à invariável questão "Em quê?".
    Na realidade a resposta verdadeira é "estava a imaginar que estava muito longe daqui, a lutar contra ninjas e que lhes estava a dar uma coça" ou qualquer outro fruto da minha imaginação fértil.
    Mas nunca posso responder a verdade. Primeiro porque não me apetece chatear ou ter de reagir a um "que pensamento estúpido/infantil". Segundo, e mais importante, porque é um mundo que só a mim pertence, que não quero partilhar e muito menos justificar.

    A minha imaginação é algo que ninguém, nem eu mesma, consegue controlar. É algo com vontade própria, não obedece a horários ou a qualquer outro tipo de regras. É um espaço invisível no qual eu posso ser Eu, sem ter de me adaptar ao Outro, sem consequências sociais ou morais. Sem me preocupar se ofendo alguém ou firo  susceptibilidades (o que acontece com frequência quando abro a boca).
    Sem imposições de qualquer espécie.

Certezas inabaláveis, acho eu...

    Sempre tive certezas sobre as quais era impossível dissuadir-me. E, invariavelmente, acabava a ter a certeza de que antes estava errada e que agora é que estava certa. Por vezes acontecia que passava a ter a certeza de que à primeira é que estava certa e que pelo meio tinha tido um devaneio.

    Agora deixei-me de certezas absolutas. Tenho a certeza!
   Acredito (e ninguém será  capaz de me fazer ter a certeza do contrário), que buscamos verdades absolutas para justificar o que sentimos e o que queremos fazer num determinado momento da nossa vida.

    Tenho também a certeza que muitas vezes escolhemos bem as palavras ao apregoar essas certezas, de modo a que quando tivermos uma que substitua a anterior, nunca tenhamos estado errados, mas sim sempre certos, validando certezas incomparáveis ou incompatíveis.

    "Eu recuso-me a comer fritos. Tenho a certeza de que fazem muito mal à saúde. E depois aquele sabor a oleo, horrível", mas quando somos apanhados a comer fritos "Ah, é terrível. Fazem mal, mas eu tenho a certeza que são muito mais saborosos, tal como tudo o que nos faz mal".
    Que deliciosamente hipócritas somos. Fritos ou assados, buscamos permanentemente o prazer. Seja a querer ter um corpo de modelo e ter homens a babar-se pelo nosso corpo, seja a enfardarmos uma bela dose de batata fritas acabadinhas de fazer e ainda a reluzir de tão gordurosas que estão. E depois lá vem a culpa. Porque não é bonito sucumbirmos nem à vaidade nem à gula.

    Mas... Enveredei pelos fritos porquê se eu faço tudo no forno? Nem sei se isto ilustrava bem o que queria dizer com a coisa das certezas. Estava tão convencida quando comecei esta comparação, mas agora já não tenho a certeza. Acho que me perdi pelo caminho.

    O meu pensamento tem vida própria. Disso eu tenho mesmo a certeza!

Manias minhas... Não as vou, nem quero, perder.

    Não gosto de escrever ao computador. As minhas ideias e o meu raciocínio fluem muito melhor quando estou munida de uma folha de papel e um lápis.
    Sim, lápis e não caneta. Rascunho que é rascunho é em lápis, mesmo se preferirmos riscar e não apagar. Gosto de riscar porque me permite ver a evolução do meu pensamento. Permite-me voltar a um instante de diálogo comigo mesma em que preferi substituir uma frase ou um termo por outro.
    
     Mas prefiro lápis. Sim, lápis e não lapiseira. Com a força que faço ao escrever, a mina parte-se com frequência o que me causa bastante irritação e quebra de raciocínio.
    Toda a minha tese foi escrita e rescrita a lápis. A cada parágrafo que escrevia atribuía um número que depois ordenava de uma forma e depois de outra até achar que assim é que estava correcto. No final, é que passei as dezenas e dezenas de páginas a computador.
    
    Com lápis é mais belo. O cheiro é sublime e há algo que me fascina no som que o carvão faz ao deslizar pelo papel.
    Gosto de afiar, com perfeição, o lápis antes de começar a trabalhar. E gosto como vai ficando com um traço cada vez mais grosseiro, mas cada vez mais suave.


    Também não gosto que me interrompam enquanto escrevo. Seja a responder a alguém num site da internet, seja no trabalho, seja no que for. Abomino quando me interrompem com um "estás a escrever o quê?". Provavelmente, porque o interesse é pouco e não passa de uma pergunta de circunstância que me me distrai da tarefa mais ou menos prazerosa que tenho em mãos.
    Deixa-me. O que interessa é que estou concentrada e me interrompes. Aguarda que te responda, quando puder e quando quiser, e nem penses em repetir a questão como se fosse surda. Provavelmente nem te ouvi, estou concentrada e bloqueei todos os estímulos exteriores. Ou se calhar ouvi, mas não queria ouvir, não me queria concentrar noutra coisa. Quando estiver pronta, procuro-te e falamos.
   
    Quando estou a escrever e me interrompem, não me param apenas os dedos mas também a linha de raciocínio. E tentar voltar onde estava costuma ser uma causa perdida, acabado por apagar tudo e recomeçar, ficando sempre aquela sensação terrível de que já não estamos a conseguir fazer tão bem como inicialmente.
    
    E durante largos minutos ficarei a tentar recuperar o irrecuperável, ficando frustrada até me distrair com outra coisa qualquer. Olha, um gato!

As opiniões são como...

    Irrita-me quando dizem "não gosto daquela malta que tem opinião sobre tudo".
   Talvez porque pertenço à "malta que tem opinião sobre tudo". Tenho é o cuidado se referir antes "pelo que sei/ li/ vi/ ouvi/ vivi, acho que...".

    Se somos seres pensantes (e não tenho a presunção de afirmar que somos os únicos a fazê-lo), não haveremos de ter opinião sobre algo que nos apresentam? Podemos também admitir que não temos dados suficientes e que a nossa opinião pode ser completamente inútil ou pedir mais informação sobre a questão em causa para que possamos no momento e de uma forma não absoluta tecer a nossa própria opinião.

    E porque não dizer que não sabemos o que achar porque nada é linear e depende muito do ponto de vista e das experiências de cada um? A minha experiência não é a mesma do que a pessoa que está ao meu lado, à minha frente ou do outro lado do ecrã. Bolas! As minhas opiniões vão-se construindo e desconstruindo conforme vou vivendo, sentido, experimentando.

    O problema, e é aqui que a coisa geralmente se complica, as pessoas só querem validação do seu ponto de vista e não que as façam pensar no assunto. Não contem comigo para validar seja o que for. Porque o fariam? Porque o fazem? Porque precisam de validar algo que é tão pessoal como a sua opinião e tão válida como a da pessoa que não concorda com elas? Ou precisam de validação porque sabem que algo falha, nas suas conclusões tão irrevogáveis como a saída do Portas do governo?

    Gosto que as pessoas se ponham do lado que criticam e tentem percebe-lo. Não digo que consigam, mas que pelo menos tentem. Quem não gosta de quem opina sobre tudo, geralmente só se lembra disso quando ouve algo com que não concorda ou que considera absurdo.

    Gosto quando alguém tem uma opinião diferente da minha. Dá-me prazer discutir ideias, opiniões, perceber de onde vêm e porque, apesar de diferentes das minhas, são igualmente verdadeiras. Dá-me gozo não concordar e explicar porquê. Estimula-me uma conversa mais acesa onde há respeito entre pessoas que não pensam do mesmo modo, porque não vêm das mesmas realidades, não fizeram exactamente o mesmo percurso.

    Mas, tenho de confessar, dá-me uma satisfação narcísica e maliciosa quando a considero a opinião absurda e ainda mais quando é um tema que conheço e percebo que a pessoa não se informou o suficiente e não tem a humildade para o admitir. É quando me divirto mais e quando, em vez de fazer passar o meu ponto de vista de forma directa, faço apenas perguntas. Aí, confesso que sou mazinha e que me dá algum prazer em vê-la a patinar e a contradizer-se, coisa com a qual a confronto na hora e, com um sorriso nos lábios, me delicio com um espectáculo de "sapateado".

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Parte III - Quando está lá em baixo acabou

   Tinha eu dez anos quando, no dia 23 de Dezembro me foi dito que a minha irmã mais velha tinha morrido. Nesse mesmo dia, fui levada ao funeral, com a incumbência de apoiar o meu pai. É estranho como me lembro tão bem daquele dia. Como se, durante o decorrer dos eventos, estivesse a viver uma experiência extra corporal.
    O telefone tocou a meio da noite. A minha mãe atendeu e começou a chorar, e a minha reacção foi chorar com ela. Achei logo que ou o meu avô, que tinha sofrido um AVC há uns meses e sabíamos que poderia morrer a qualquer momento, ou um amigo da minha mãe tinha morrido. Este último tinha um cancro terminal e o filho, prestes a ficar órfão de pai e de mãe, estava a passar a noite em nossa casa para se afastar da doença e da morte. "Mãe, foi o Mário?", "Não. É a Joana. Está muito doente. Está no hospital." chorou a minha mãe.

    De manhã vestiu-me com um macaco de calções em fazenda azul escura e camisa e collants de lã brancos. Peguei na prenda de Natal que tinha para a minha irmã, uma cigarrilha  de osso trabalhada, para lha dar e animar um pouco.
    A minha mãe, uma amiga e eu parámos, num café de um pequeno centro comercial do bairro, para comer qualquer coisa antes de seguirmos para o hospital. Pedi dinheiro à minha mãe para comprar uma segunda lembrança à minha irmã. No corredor, a nossa amiga pára-me e diz "A Joana não está no hospital. A Joana morreu". Corri para os braços da minha mãe e chorámos juntas.

    Entrámos na capela mortuária. Eu queria ver a minha irmã. O corpo dela jazia no meio da sala e quem estava à volta chorava. Tinha um véu branco a cobrir-lhe a face. Eu queria ver a minha irmã, mas a minha mãe não deixou. “Prefiro que te recordes dela viva, do que te lembres dela assim”. Será que quando a mãe, minha avó, morreu ela a viu? Ou será que lhe disseram o mesmo?
    Não me lembro da minha irmã. Nem viva, nem morta. Só de fotografias que vi e revi após esse dia. E da sua gargalhada estridente, vibrante. E mesmo esse som se vai desvanecendo com o passar do tempo... Talvez seja melhor assim a sua face pálida ter-me-ia aterrorizado para sempre.

    Quando saímos da capela fui no carro funerário, entre o meu pai e a mãe da minha irmã. Tudo para apoiar o meu pai. Eu estava desconfortável, confusa. O que era suposto fazer? O que devia ou podia dizer? Ofereci um rebuçado que encontrei no bolso do casaco. Recusaram e eu comi-o. Senti-me tola. A dor deles era imensa. E a minha? O que sentia eu? Certamente não me poderia sentir pior do que eles, que eram os pais. E, se o meu pai não chorava, eu não podia chorar. Porque eu estava ali para o acompanhar e não podia ser mais uma preocupação, um fardo.
    Lembro-me de descermos a rua do cemitério até ao local onde tinha sido escavada a sepultura. Lembro-me de pousarem o caixão e de o abrirem. Lembro-me de ficar horrorizada pela mãe e uma amiga beijarem o corpo. Não me lembro de mais.

    A minha mãe diz que me fui abaixo quando o caixão desceu à terra. Acredito. Não tenho memória desse momento, mas não deve ser fácil ver alguém que se ama a ser enterrado. Não deve ser fácil perceber pela primeira vez que nunca mais poderemos ver, nunca mais poderemos tocar, nunca mais poderemos falar com essa pessoa. Quando se desce à terra é o fim do fim. Não há espaço para ignorar que não há “só mais um toque”, “só mais um beijo”, “só mais um adeus”.
   

    Quando está lá em baixo acabou.

Parte II - Os miúdos não eram tão cruéis como na escola privada

    Ao contrário de da maioria dos meus colegas e amigos da escola, eu nunca tive um Gameboy ou outra consola de jogos. A minha mãe era contra e os meus jogos eram o Mikado, o Lotto e o Tangram.
    
     Agora que penso nisso, acho que fica explicada a minha quase-obsessão pela simetria e perfeição, o meu gosto por trabalhos manuais que exigem alguma perícia e paciência, e porque é que jogo no euromilhões (quase) todas as semanas.

    Mais tarde tive um Trivial (edição familiar), que ainda tenho e jogo com amigos a altas horas já depois de uns copos, mas que se tornou ainda mais difícil porque agora envolve grandes capacidades mnésicas e contas. Para a pergunta “Quem apresenta o programa tal?” temos de nos lembrar que programa passou há 20 anos na televisão.

    Nenhum dos meus colegas tinha esse tipo de jogos, todos tinham consolas e “Quem é Quem?” ou o “Monopólio”, e como eu os invejava. Ainda hoje procuro o “Quem é Quem?” dos anos 90.
    
    Tinha Barbies. Não tantas como as minhas colegas, nem as últimas a sair para o mercado, mas conseguia ter algumas. Por vezes a minha mãe tentava oferecer-me um vestido ou outro acessório, mas se não fosse original, da marca, eu não queria. Como é que a minha não percebia a diferença entre o oficial e a imitação? Era algo que me transcendia… Agora sei, a diferença era entre o que fazia mais ou menos diferença na carteira da minha mãe. Também não tinha a cama ou a cozinha da Barbie, mas improvisava com coisas de outros bonecos e, assim, construía as casas para as minhas histórias, que envolviam sempre amor, sexo, traição e homicídio.
    
    Ainda na primária, com nove anos, comecei a desconfiar que precisava de óculos. Sentava-me no fundo da sala e custava-me diferenciar certas letras e números que a professora escrevia no quadro. Com as letras conseguia contornar o problema pelo contexto, mas as minhas contas saíam quase sempre erradas porque confundia muitas vezes os 1, 4 e 9, consoante a caligrafia da professora. Para além da escola, os meus avós paternos estavam sempre a dar-me raspanetes por me sentar quase colada à televisão. Da primeira vez que falei com a minha mãe, ela não acreditou em mim. Achou que, como nem ela nem o meu pai usavam óculos, e como alguns colegas da turma começavam a usar, devia ser eu que queria usar óculos. Mas quem, no seu perfeito juízo, quer usar óculos? Apenas ponderou que talvez eu estivesse mesmo a falar a sério quando, numa noite fomos à ópera e eu passei todo o tempo a pedir que me lesse as legendas.
    
    Quando acabei o ensino primário a minha mãe decidiu que eu podia seguir para a escola pública. Assim, saí de um colégio privado de uma zona fina da capital para uma escola pública no meio de bairros sociais. Ainda me lembro de ter ido com os meus pais ver a escola durante o verão e termos avistado uma ratazana a passear-se pelo recreio. Odiei essa escola. Deve ter sido um choque demasiado grande. Quase como quando, no pingo do inverno, se está numa sala com o aquecedor no máximo e se sai para a rua. Pelo menos, os miúdos não eram tão cruéis como na escola privada, mas não gostei mesmo nada do ambiente.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Parte I - Tudo Começou em Mim

       Desde os meus três anos que os meus pais estão separados. Nunca se casaram, pelo menos não um com o outro. Depois dos seus primeiros (e únicos) casamentos, devem ter percebido que aquele tipo de compromisso não era algo que lhes interessasse novamente. Do primeiro casamento do meu pai tinha duas irmãs e de outra relação um irmão (eu sou a mais nova dos quatro). Da minha mãe sou filha única. O facto de ser a mais nova de um lado e a única de outro poderia ser uma mistura explosiva, com grandes probabilidades de ter saído uma fedelha mimada, com a mania de ser rebelde, incapaz de partilhar e protegida em demasia pelos "papás". Estranhamente, tirando a fase normal de rebeldia adolescente, nunca fui mais problemática do que qualquer típico adolescente.
    
    Na escola primária não era a criança mais popular. Não gostava dos meus colegas e eles não gostavam de mim. Perfeito! Mesmo assim tinha três amigas com quem me dava bem. A escola era privada, numa zona elitista da capital. O ensino era muito bom, muito moderno, seguindo as linhas da escola francesa.
    O meu problema não era o ensino, eram os colegas. Nunca me consegui identificar com aquele pretensiosismo de "elite". Eu era a única criança da turma cujos pais não estavam casados e isso criava-me uma imensidade de problemas que decorriam do meu quotidiano familiar diferente do dos outros. Era alvo da crueldade dos meus colegas para quem eu era uma mentirosa porque dizia que tinha um cão mas ninguém tinha visto o meu cão (estava com o meu pai), dizia que tinha irmãos mas ninguém os via, dizia que era pobre e para eles isso era impossível. Bem, pobre não era, mas a minha mãe fazia um esforço enorme para que eu pudesse frequentar um ensino melhor e justificava a impossibilidade de certas compras (brinquedos...) dizendo-me que éramos "pobrezinhas", coisa que eu repetia inocentemente na escola.

   A minha mãe fez um esforço imenso para me dar uma boa educação e não era fácil ser apenas ela no dia-a-dia. Na altura eu não compreendia e, se de algumas coisas eu nem me apercebia, outras havia que eu não percebia e me causavam tristeza e inveja dos meus colegas. A verdade é que, com a idade, vim a perceber e agora acho que só fez de mim uma pessoa melhor.
    De vez em quando a minha mãe dizia que fazia o meu jantar ou almoço preferido: o "piquenique". Adorava! Sempre fui um pisco a comer e no piquenique só comíamos o que eu mais gostava: sandes, ovos quentes e "restos". Para mim era óptimo, não ter de comer nervuras da carne ou, pior ainda, peixe! A minha avó paterna achava este um péssimo hábito, mas, na realidade, o piquenique era uma forma que a minha mãe tinha de fazer o dinheiro esticar e tentar aguentar até ao final do mês.

    Só tivemos televisão quando fiz oito anos e não me lembro de, até essa data, a televisão me ter feito falta. Tinha livros, adorava ler e era a ler que a minha mãe me fazia comer. Negociava um parágrafo por uma garfada. Mais um hábito que não era permitido em casa dos meus avós. Podíamos ver televisão, mas ler à mesa nem pensar! Quando fiz oito anos o meu tio ligou à minha mãe e disse que me ia oferecer uma televisão pelos anos. Ela assentiu, mas só a condição de ser também oferecido um vídeo. Não queria que eu começasse a recusar fazer coisas só por causa da televisão. A verdade é que, com a chegada da televisão, a ida para as aulas no British Council aos sábados de manhã tornaram-se numa tortura porque me impediam de ver os desenhos animados.

domingo, 6 de abril de 2014

Passei a Noite de Sábado Contigo

   Tinha um grande jantar agendado, só amigos. Ia ser uma noite em grande. Daquelas que não sabemos muito bem como irá acabar, mas em que temos a certeza de que quando acordarmos com uma ressaca fenomenal esta terá valido a pena. Daquelas noites em que se vai dormir uma sesta para se aguentar até à manhã seguinte.

    Acordei doente. "Merda". O meu estômago e a minha cabeça estavam, notoriamente, revoltados com algo. Arrastei-me até ao sofá onde, momentos depois, me vieste ao pensamento e fiz um esforço hercúleo para te ir buscar, lutando contra a preguiça e o enjoo.

     E passei a noite de sábado contigo.

   Frente a frente, nada mais existia ou importava. Estava demasiado embrenhada em ti. As tuas palavras, o teu cheiro, o teu toque... E enquanto todos se divertiam e bebiam uns copos, eu fiquei doente e foste tu e as tuas palavras que me acompanharam durante horas. O que contavas fez com que o meu estômago se acalmasse e a minha cabeça relaxasse.

    Durante horas bebi as tuas palavras. Durante horas eras o centro da minha total atenção e nada mais existia. Durante horas despertaste a minha curiosidade, fizeste-me reagir com absoluta discordância nuns momentos e completa concordância noutros. Cheia de vontade de refutar e lutar contra as tuas ideias num instante, e vontade de te fazer uma vénia noutros. O que abordavas de modo superficial deixava-me sedenta de saber mais, de te fazer esmiuçar essas ideias, esses pensamentos.

     Durante horas não houve mais nada. Nada mais merecia a minha atenção. Apenas as tuas palavras interessavam, apenas as tuas palavras me estimulavam e me faziam reagir. Durante horas eras só tu, e nada me demoveria de te saborear, de te sentir até ao fim. Fim esse que temia, que sabia que me deixaria satisfeita e frustrada ao mesmo tempo. Fim esse que apenas me faria procurar-te novamente. E ele aproximava-se a uma velocidade vertiginosa.

   Terminadas as palavras, olhei-te de alto a baixo, sorri-te, acariciei-te... Fechei as páginas e fui dormir.

     Passei a noite de sábado contigo.