quinta-feira, 18 de outubro de 2018

"Os papagaios também pedem desculpa"


As crianças (e os adultos, convenhamos) não devem ser obrigadas a estabelecer contacto físico seja com quem for.
Ensinar uma criança a cumprimentar os outros não é, nem pode ser, exclusivamente sinónimo de contacto físico. Senão andávamos a distribuir beijos pelo supermercado.
Não, não é obrigatório darem beijos aos avós, só porque são avós. Nem à amiga dos pais, nem aos vizinhos, nem a quem quer que seja.

Sim, podemos sugerir "dá um beijinho à avó", mas se a criança não quiser, esse querer deve ser respeitado.
As crianças devem ser educadas a cumprimentar porque faz parte do aprender a estar em sociedade, mas esse cumprimentar pode-se fazer de imensas formas:
- dizer "olá";
- dar "mais cinco";
- acenar;
- dar um aperto de mão;
- abraçando;
- beijando.
E a criança pode escolher de que forma se sente mais confortável para cumprimentar o outro que está à sua frente. Não quer estabelecer contacto físico, não estabelece.
Com a obrigação não se educa, amestra-se.


A partir do momento em que é preciso “forçar” uma demonstração física de afecto já algo está errado. O afecto não pode ser forçado, isso é uma contradição. A expressão de afecto tem de ter origem na vontade de quem sente esse impulso.
Forçar uma criança a cumprimentar alguém de um modo físico é promover um contacto físico contra a sua vontade e é ensinar-lhe que não é soberana sobre o seu próprio corpo. Sim, porque o "forçar" ou "obrigar" é sempre contra a vontade da pessoa, senão não lhe chamávamos "forçar" ou "obrigar".
Há muita gente que obriga os filhos a cumprimentarem fisicamente desconhecidos ou pessoas de pouca confiança. E nem com conhecidos e familiares se deve forçar contacto físico.
"As crianças têm de aprender a ser afectuosas. Como é que os outros sabem que gostamos deles se não os beijamos ou abraçamos?" - Pensarmos que só há afecto ou amor se for demonstrado fisicamente é extremamente redutor. O amor só pode existir se existir respeito e o corpo/espaço físico de cada um deve ser respeitado, independentemente da idade e do grau de parentesco.
Ao forçar ou obrigar um cumprimento que implique contacto físico não estamos a promover uma aprendizagem de como expressar fisicamente os seus afectos de um modo positivo e prazeroso, que é como deve ser a demonstração física de afectos: de iniciativa espontânea e de livre vontade. Já para não falar dos perigos em colocamos as crianças quando lhes ensinamos que as suas vontades sobre o seu corpo não são soberanas.

Pintura por Yihang Pan - fonte

Não nos podemos prender nas nossas experiências pessoais. Os nossos filhos não somos nós. Há casos em que os avós eram fixes e há casos em que não o eram. E quem diz avós, diz pais, tios, primos ou vizinhos do terceiro esquerdo.
Tal como eu não gosto de contacto físico, há muita gente que adora expressar-se desse modo. O que é importante é que cada um seja livre de expressar os seus afectos como quer, quando quer, a quem quer e da forma que quer.
Ninguém deve ser obrigado a beijar ou a abraçar quem quer que seja, só porque alguém mandou. Alguém maior, alguém numa posição de autoridade. Isto é, completamente, contraproducente.
Não dar um beijo ou um abraço não significa que se seja mal educado.
Se a criança QUISER cumprimentar com dois beijos, se não for forçada e houver uma relação afectuosa mútua entre a criança e a outra pessoa, ao observar os pais e pessoas com quem convive diariamente e tem como modelos, a criança irá aprender naturalmente e por imitação a beijar as pessoas de quem gosta.
Em vez de aprender que TEM de o fazer senão os outros ficam tristes ou zangados, ou leva uma palmada ou é repreendido. Sim, porque a chantagem emocional é muito comum: quantos de nós não se viram já numa situação em que os pais da criança dizem "dá um beijinho ao tio/avô/primo/amigo" e a criança diz que não. E insistem. E a criança repete que não. E os pais dizem "se não deres o beijinho o avô fica triste", "dás o beijinho ou tenho de me chatear?" Isto é péssimo e é muito habitual. Já tive de dizer a pais "se ele não quer, não quer. Não há problema" e tento um downgrade para um "mais cinco" ou algo que o valha, para safar os putos. 
Tanto as crianças como os adultos só se deveriam tocar uns aos outros, como forma de expressão de afecto, quando querem, porque querem e a quem querem.
Porque é que eu tenho de dar dois beijos se não conheço alguém? Porque é que a minha cara ou os meus lábios têm de tocar no corpo de um desconhecido ou de alguém com quem não tenho confiança? Ou porque é que tenho de deixar que toquem no meu?

Grafiti por Alice Pasquini - fonte

Repito: com a obrigação não se educa, amestra-se.
A Carminho está a ser ensinada a cumprimentar as pessoas. E, caramba, como ela adoooora acenar e dizer “olá” a toooooda a gente que se cruza com ela.
Mas não será, nunca, obrigada a beijar, abraçar ou a estabelecer qualquer tipo de contacto físico contra a sua vontade. Ela é soberana a quem e de que forma escolhe expressar fisicamente os seus afectos.
Em primeiro lugar sou mãe e cabe-me educá-la, mas serei também amiga. Com limites, claro. Não creio que o meu papel seja apenas debitar informação sobre como estar no mundo e esperar que ela obedeça porque “eu é que sou a mãe”. Não quero criar um robot, quero criar uma criança curiosa e crítica do que se passa à sua volta. Se quisesse ter uma criatura que me obedecesse cegamente tinha arranjado um cão.

Isto é válido para muitas coisas. Não acho que se deva forçar o que quer que seja. Deve-se, isso sim, ensinar.
Porque é que alguém tem de comer a sopa toda? Muitas vezes não como tudo porque já não me apetece mais ou porque estou cheia. Como mais tarde. Porque é que com as crianças se deve estabelecer essa relação de medição de forças? Comer é e deve ser um momento de prazer. Por algum motivo confeccionamos os alimentos e escolhemos determinadas combinações. Precisamente para termos prazer ao alimentarmo-nos. Não o fazemos apenas porque “tem de ser para sobreviver”.
A minha filha tem apenas 17 meses e come a sopa quando gosta. Dou sempre a provar, se recusar duas ou três vezes pode ser porque naquele momento não tem fome, porque não gosta daquela combinação de sabores, porque não lhe apetece... Geralmente come e muito bem. Porque gosta, porque lhe sabe bem. Não porque “tem de ser”.

Autor desconhecido - fonte

E tal como é com os cumprimentos e com a alimentação será com tudo.
Porque é que se acha boa ideia obrigar o pedir desculpas? Como diz uma amiga minha "os papagaios também pedem desculpa". Se calhar, é melhor conversar com a criança sobre a situação, sobre o que aconteceu, como fez os outros sentirem-se e como fazer para melhorar a situação. Em vez de obrigar a um pedido de desculpas automático e não sincero. A Carmita já me deu uns piparotes com mais força e, se eu digo que isso não se faz, a seguir dá-me festinhas - está a aprender a pedir desculpas.
E porque é que não ensinamos a arrumar? Com 17 meses já está a aprender a arrumar os seus brinquedos e outras coisas. Quando me vê a varrer vai buscar outra vassoura e tenta imitar. Se eu lhe peço para ir buscar ou arrumar um objecto ela fá-lo (ok, nem sempre, mas na maioria das vezes).
É muito pequenina, mas não precisa de reforços negativos ou de gritos para aprender. Ela percebe muito bem muitas coisas que lhe dizemos (do domínio prático, evidentemente).

Achar que eles não percebem quase nada é subestimar as crianças. Percebem muito mais do que julgamos e é preciso termos paciência e darmos-lhes tempo para aprender e compreender essas aprendizagens.

Ilustração por Monica Barengo
http://nikillustrazioni.blogspot.com/

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