quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Natal: Não dá para escapar

Na manhã de 24 de Dezembro, a caminho da Consoada, o Duarte recordava os seus Natais de criança e quão bem a sua Avó Materna preparava e cozinhava para a Consoada e Dia de Natal. Babava-se pelo bacalhau, pelo polvo e pelo leitão e pelos doces que via a Avó preparar, com o auxílio da família.
- Olha, ali aquela fila gigante para ir comprar os doces. Já ninguém se dá ao trabalho de cozinhar os doces. Tudo de compra! A minha Avó fazia tudo e era tão bom. A tua de certeza que também cozinhava e bem! Aposto que, tal como a minha, não comprava nada feito.

- Bem, se queres que te diga não sei. Não me lembro. Provavelmente. Com a morte da minha Irmã apaguei todas as memórias anteriores e os Natais seguintes não eram muito felizes.
Lembro-me que nos juntámos para a Consoada no dia a seguir ao funeral, mas não me lembro de nenhum Natal anterior. Lembro-me como a partir desse ano todos os Natais eram pautados por um silêncio gritante, por uma ansiedade sentida e escondida por todos, tudo num limbo entre a necessidade de manter a família unida e a vontade de não estar ali. De não se falar do que ia na mente de toda a gente e que era tão visível.

Não sei o que comíamos, mas lembro-me como me sentia. Lembro-me de olharmos de lado uns para os outros e, de certeza, pensarmos no mesmo. Nos fantasmas que rodeavam a nossa mesa e que ninguém tinha coragem para convocar, para lembrar de forma aberta.
A Família entrou em modo de sobrevivência: tínhamos de manter os rituais familiares, mas não se podia falar dos que faltavam e deixavam saudades. Qualquer tentativa de recordar era silenciada. A necessidade de lembrar de uns era um confronto à necessidade de recalcar de outros.
O seu nome era murmurado e olhávamos todos para o chão.

Desde os meus 10 anos que os Natais não eram felizes. Eram uma angústia. Tinha saudades da minha Irmã e, não só a minha mente a tinha escondido como não me era permitido que a recordasse.
No momento em que, no dia 23 de Dezembro, me disseram que ela tinha morrido que todas as memórias foram recalcadas. Ainda hoje, não me lembro de momentos passados com a minha irmã. Durante muitos anos, as minhas únicas memórias eram a sua gargalhada e o dia do funeral. Tentei agarrar-me o mais que pude, mas agora já nem sei se a gargalhada que oiço é a dela ou algo que minha mente entretanto substituiu. Do dia 23 lembro-me como se fosse ontem. E, doa o que doer, não quero esquecer.
A outra memória mais aproximada é da última vez que estive com ela. Com grande tristeza minha, a mente humana funciona de formas tão fantásticas para a sua sobrevivência que, lembro-me de tudo menos da figura da minha Irmã. Lembro-me dos sítios, dos diálogos, das outras pessoas que estavam presentes, de onde vínhamos, para onde fomos, de tudo. Mas a figura da minha Irmã não está. Há um vazio ali.



Durante anos, o Natal causou-me as maiores angústias. Uma ansiedade terrível e uma depressão que ressurgia, ano após ano.
Não é uma data que se possa esquecer. Não é uma data da qual se possa fugir. Uma tragédia num dia de celebração significa que esse dia passa a ser o dia da tragédia e não da celebração. E quando a tragédia acontece no Natal, significa que meses antes começamos a ser recordados.
Não é como outros dias em que nos lembramos quase na véspera. Não...
É um dia que começa a ser anunciado em meados de Outubro e que começamos a ser bombardeados com a felicidade dos outros, que fazem uma contagem decrescente para um dia em que é suposto sermos felizes e ansiosos por estarmos com a família. No meu caso, começava a contagem decrescente para o dia em que me disseram "A Joana morreu". Para o dia em que, com 10 anos, entrei num carro funerário para apoiar o meu Pai. Para o dia em que vi, pela primeira vez, um corpo descer à terra.
A partir de Outubro, começava a televisão e a rádio e o comércio a anunciar "está aí o pior dia do ano". E as pessoas à minha volta sorriam e diziam "ai, mal posso esperar pela altura em que morreu a tua irmã!". Claro que as pessoas não dizem isto, mas era isto que sentia. Não se consegue escapar a esta época, só se formos viver para um sítio sem comunicações, isolados do mundo, do conceito de tempo.
Ano após ano, mal se começava a anunciar o Natal, começava um crescendo ansioso dentro de mim. Uma ansiedade que crescia, crescia, e que explodia em depressão.

As outras pessoas não têm de saber ou de se lembrar que para nós é uma altura complicada. E celebram, celebram, celebram. E nós definhamos um pouco mais a cada dia que se aproxima a celebração. Eu fazia uma contagem decrescente para um evento familiar triste, mascarado de feliz e de união. E sentia tudo menos isso. Sentia-me mal, agoniada. E, naturalmente, passei a odiar o Natal. 
Como gostar de uma época que nos causa sofrimento? E um sofrimento tão anunciado? Como gostar de uma época em que é para estar feliz, mas só queremos escondermo-nos e chorar até que passe? Como gostar de uma época em que, se precisarmos de alguém, não está ninguém disponível porque está ocupado a ser feliz com a sua família?
Não há como escapar e está em todo o lado: na rádio os locutores fazem-se super entusiasmados com aproximar da época, na televisão são os anúncios e os logotipos em versão de Boas Festas, a música ambiente é natalícia, os outdoors também invocam a época, nas redes sociais começam a aparecer publicações alusivas à época e que vão crescendo até começarmos a ver árvores de Natal no início de Novembro... Para onde quer que me vire lá está ele: o aniversário da morte da minha Irmã. Uma sensação sufocante e claustrofóbica.

Durante mais de 20 anos vivi assim esta época: com dor, com ressentimento, com tristeza. Até que decidi: Já chega! Não posso viver mais assim. Não tenho de viver mais assim. No mundo em que vivo não há como fugir ao Natal, por isso tenho de o aceitar.



Entretanto, no ano passado engravidei e decidi que mais do que o aceitar e deixar de tentar fugir-lhe, iria tornar o Natal numa época feliz. Além do mais, a minha Filha não tem de herdar o meu sofrimento. Não tenho o direito de lhe retirar uma celebração, por mim. Se ela um dia disser que não quer e que não gosta, tudo bem, mas até lá o Natal será uma época feliz - por ela.
Tal como não posso escapar ao Natal, não posso escapar à minha história. Não consigo (nem quero!) fugir às minhas memórias. Não consigo evitar momentos em que estou mais triste. Não consigo deixar de chorar um pouco num duche um pouco mais demorado. E não faz mal, faz parte de quem eu sou, de como sou, do que sou.
Mas já chega de depressões, de me arrastar em tristezas e em ansiedades. Não tenho de gostar do Natal, mas decidi que vou aprender a vivê-lo. Vou ter prazer em fazer a Árvore de Natal, em escolher a ementa para o almoço de 25, em pensar em presentes e embrulhos (simbólicos para os adultos e "bons" para os miúdos). Vou tirar fotos de Natal: no ano passado foi a barriga, este ano foi a Bebé, para o próximo ano logo se vê. Vai haver um presépio, vão piscar luzes, vai tocar Frank Sinatra. Vou cantar Mariah Carey e Wham!, e não vai ser apenas para irritar o Duarte.

Tal como eu, há muita gente que sofre nesta época. Não é à toa que aumentam as depressões e os suicídios - é, realmente, uma época angustiante e de stress para quase toda a gente. Simplesmente, para alguns o peso é demasiado.
Não temos de gostar do Natal, mas temos opção: ou escolhemos afundar-nos ou escolhemos aprender a viver com ele, a aceitá-lo. Eu escolhi torná-lo numa época feliz e com um novo significado. Ou, pelo menos, tentar.

Continuação de Boas Festas!! 🎄

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